inteligência x conhecimento
comecei o rascunho desse texto escrevendo que “tenho medo dessa tal ‘inteligência’.” e nem falaria da artificial, mas da humana mesmo.
sempre que quero escrever algo que tem um nome próprio para se apresentar por aí pelas conversas, começo o processo buscando o significado num dicionário online. primeiro, leio a resposta curta do topo da página do google, que quase nunca me parece suficiente. aí procuro o dicio ou o dicionário informal, dois dicionários online de que gosto bastante, este último principalmente porque ele compreende uma realidade ainda maior que o primeiro. para ir mais além, adoraria recorrer à memória afetiva do Houaiss online (um dicionário que eu tinha e vivia folheando quando criança), mas não gosto de ser forçada a fazer login para ter acesso à informação (o dicionário de capa laranja e folhas acinzentadas nunca me pediu, afinal). recorro então ao Priberam, ao Michaelis, às vezes a uma equivalência no Cambridge porque ler em outro idioma me impede de presumir significados. e por vezes recorro ao site Significados ou à Wikipedia.
(exemplo dessa necessidade: fui escrever o projeto de pesquisa do meu tcc e, na hora de delimitar o tema, escrevi “produção de animação”. mas aí travei, suei, perguntei: o que é produção? produção de animação em qual sentido? porque eu adoro usar o produzir na direção de criar, mas este não poderia ser meu sentido ali. a professora precisaria de mais detalhes sobre o que quero dizer. então fui lá caçar os vários usos de “produção” para depois parafrasear qual sentido produtivo era de meu interesse. nem vou manter essa definição da palavra na monografia, no fim das contas; mas esse significado destrinchado me foi genuinamente útil durante o desenvolvimento do projeto, pois me serviu de norte e me impediu de surtar por falta de foco.)
meu norte aqui, então, seria a inteligência. “qual inteligência?”, eu precisaria responder para o caso não-muito-provável-na-verdade de alguém aí perguntar. mas quando me deparei com a página dos Significados de inteligência, vi que não era bem isso que eu queria dizer.
a inteligência, em alguns cantos, é definida também como a “capacidade” ou a “faculdade de conhecer”. em outros cantos, derivados do “conhecer” não passam tão perto das definições. inteligência passa a ter mais a ver com compreensão, interpretação ou aprendizado. inteligência se desenrola um pouquinho e se torna conceito filosófico para a origem da intelectualidade. inteligência cai, quebra e se torna várias — nenhuma melhor ou pior, apenas diferentes.
lendo esses significados, concluí que não temo a “inteligência”. na verdade, é algo que eu adoro. amo. sou fascinada! como quando consigo perceber uma informação viajando e se conectando a outra informação que tava lá no outro lado do cérebro, daí vejo algo novo se formando — numa transformação estilo garota mágica em anime, que flutua e brilha e se expande dentro da minha cabeça, depois aterrissa na rede de neurônios pra deixar sua marca. fico sempre em êxtase quando acompanho o processo de simplesmente pensar.
lembro de ter entrado em contato com essa ideia das múltiplas inteligências bem novinha, ainda durante o ensino fundamental escolar. e lembro de ficar encantada, me perguntando quais seriam as minhas inteligências mais desenvolvidas. na época, eu queria muito ser inteligentíssima interpessoal e espacialmente. desejava também ser muito esperta linguisticamente, pra conseguir dominar todos os vários idiomas que pretendia falar e pra escrever de uma forma “muito chique”, do jeitinho que eu achava que gente inteligente escrevia. anos e anos depois e minha criança interior talvez esteja um pouco frustrada, porque tudo que tenho de especial é inteligência intrapessoal. (grandes coisa, ser quase expert em mim mesma…) sigo me esforçando pra melhor me relacionar com outras pessoas, pra entender como diabos formas funcionam tridimensionalmente ou como é que eu faço pra parar de bater a perna na mesa da sala com tanta frequência.
não, o que me assusta mesmo é algo que, parafraseando o que algum camarada escreveu na wikipedia, pode ser confundido como sinônimo da inteligência: o conhecimento. e aí as vozinhas da minha cabeça ficam em polvorosa, gritando inflamadas “mas comassim você vai registrar na internet que tem medo do conhecimento???”, compreensivelmente me acusando de possuir pouquíssima inteligência. para alcamá-las, afirmo que conhecimento também ocupa um lugar de muita importância e admiração na minha vida. não é como se fosse novidade admirar e temer as mesmas coisas.
eu tenho medo de conhecimento. ou, melhor dizendo, tenho medo da prepotência e da arrogância que podem ser efeitos colaterais dele.
no início do mês, tive uma pequena epifania enquanto conversava com minha irmã. disse a ela que estava “de saco cheio de gente que se acha inteligente”. (e que, veja bem, isso era também uma autocrítica.) mas a verdade é que entender meu problema requer a premissa de que não só eu, mas muitas pessoas às vezes usamos “ter conhecimento” e “ser inteligente” de forma indistinta. sendo que — de novo parafraseando o camarada da wikipedia que registrou um pouco de senso comum apra nós — existem pessoas com conhecimento e sem inteligência para articular, assim como existem várias pessoas com inteligência e sem acesso a conhecimento.
conhecimento poderia, talvez, ser substituído por “informação”. e em uma sociedade que tudo mercantiliza, informação é moeda. e se informação é moeda, pode ser acumulada em riqueza e a partir daí tornar-se status. status e riqueza e moeda são formas de poder. quem é, pode; quem tem, pode mais ainda. e é aí que entra meu medo.
ignorância
quando penso no contexto do meu desenvolvimento, penso que sou mais um clichê: filha de pais muito inteligentes sem um diploma de graduação. e que, por isso, cresci ouvindo que “conhecimento ninguém me tira”, sendo incentivada a depositar muito esforço e esperança na (in)formação. era o sonho do conhecimento institucionalizado sendo nutrido por aqueles que viam e vêem no abstrato “conhecimento” — e no material “diploma” — a chance para vidas que lhes foram sistemicamente negadas.
não que eu veja malefício algum nessa criação, mas não há como negar suas consequências. mais ainda, não há como negar a tragédia psicológica que segue os passos das crianças que foram ““brilhantes”” quando muito jovens1. a necessidade de fazer valer o esforço dos meus pais para me dar o que eles consideravam a melhor educação possível nutriu em mim, por minha própria conta e risco, uma competitividade que não me abandona: eu não precisava somente alcançar a excelência educacional, com notas impecáveis e comportamento exemplar, eu precisava ser a melhor.
fazer faculdade e conquistar um diploma foi o objetivo principal, quase em tom de final, de mais de 20 anos da minha vida. e tentar ser (pra também poder ser reconhecida como) “uma das melhores alunas” de qualquer turma foi o que me motivou a enfrentar ano após ano de um sistema que ainda não é feito pra alguém aguentar. pra quê? na prática, pra nada. hoje, nos primeiros momentos do meu último semestre na faculdade, percebo que minha relação com o tal “conhecimento” é um tanto calejada. num processo semelhante ao que acontece com o restante da minha vida, me sinto em pedacinhos.
tenho muitos medos originados no medo de falhar que o traço perfeccionista me trouxe de presente: tenho medo de não ter aprendido o suficiente e que meu diploma vá ser só uma grande mentira; tenho medo de que eu tenha sim aprendido alguma coisa, mas que tenha aprendido o “errado” para o caminho que pretender seguir; tenho medo de passar a vida correndo atrás do que não foi feito pra mim, do que nunca conseguirei ter. mas o que mais tenho medo é do mau uso do conhecimento: tenho medo que o poder que vem com ele me aproxime dos meus objetivos, mas me distancie das pessoas. tenho medo de me tornar cada vez mais rígida, cada vez mais obcecada com as definições precisas, cada vez mais exigente de olhares complexos, cada vez mais irritada com opiniões-de-bolso. cada vez mais incomunicável, capaz de existir em paz apenas dentro da minha própria cabeça, incapaz de existir em comunidade. tenho medo também de ficar precisando mostrar que sei para parecer inteligente, porque não terei mais nada humano a oferecer.
o conhecimento, ao mesmo tempo que foi incentivado por meus pais e é incentivado na famigerada academia, também é temido por vários: por quem deseja manter o status quo, pela parte da internet que só quer se divertir e viver com a cabeça vazia. também, de forma justa, por todas as pessoas que já foram manipuladas, podadas e isoladas pelo seu uso. porque nada é de uma cor só e tudo isso pode ser conhecimento. tudo isso pode ser uso de informação.
conhecimento liberta, mas há quem o use para aprisionar. conhecimento aproxima, mas pode ser sistematicamente usado para afastar. conhecimento empodera, mas enfraquece o outro se usado para atacar. e é por isso que eu o aprecio tanto, mas também vivo em pavor.
quando disse à minha irmã sobre estar de saco cheio de quem se acha inteligente, falei de um cansaço que vem do fundo de minha relação comigo mesma e com outras pessoas. estou cansada de viver exclusivamente em função da ideia dele, querendo acumular mais e melhor informação o tempo todo, revirando os olhos em imaginação a cada comentário “desinformado” que fazem perto de mim, lendo e lendo e lendo bastante mas chegando ao fim do dia sem ter trocado nada com ninguém.
estou cansada de ser tratada como incompetente ou “menos inteligente” apenas porque meu conhecimento vem de dentro e o deles vem de fora. estou cansada de brigas e mais brigas em que não há escuta, espaço para dúvida ou explicação paciente, apenas segregação a partir do que não se sabe ou não se consegue. estou cansada de querer ensinar porque se recusam a aprender e estou cansada de não estar aprendendo sempre que posso. estou cansada de precisar fazer tanto esforço e estar sempre me provando para que me vejam como um adulto independente e confiável.
estou exausta de homens2 que acham que sabem muito. e, depois, de todas as outras pessoas que acham que sabem muito. porque inteligência todos temos, mas conhecimento nos falta infinitamente. porque tudo que você e eu podemos saber é apenas uma gota no oceano e eu estou cansada, exausta, de todo mundo — incluindo a mim mesma — que esquece da dimensão de sua própria ignorância. é como um recado na porta da última cabine de um dos banheiros sem mictório no 2º andar da EBA-UFMG: “somos todos ignorantes! o problema é quem se acha sábio em sua ignorância. não seja isso.”
ponto e vírgula;
enquanto eu revisava o texto aqui, chegou um da Aline Valek que tem muito a ver com o que andei pensando e escrevendo.
aquelas brincadeiras de rir de nervoso na internet sobre como um dia a gente era uma criança “genial”, depois a gente cresce e percebe que o pessoal só era injusto com as outras crianças e a gente só sabia decorar e hoje tamo tudo fudido da cabeça, cheio de ansiedade, insegurança e sonhos-que-nem-eram-nossos fracassados por conta de expectativas desproporcionais…
tento sempre adicionar o máximo de rótulos possíveis aos homens de quem falo, para que eu não seja injusta e coloque na mesma caixinha que os fominhas homens-brancos-cis-héteros aqueles que sofrem violências estruturais, como racismo ou transfobia. mas, nesse caso, não quis adicionar mais rótulos porque a desigualdade de gênero na autoestima intelectual ainda é pessoalmente delicada… por mais que seja majoritariamente branca, hétero e cis, a incapacidade de conversar comigo sem transformar a conversa numa competição de “quem sabe mais” não vem apenas daqueles com privilégios da heterossexualidade ou branquitude.